‘O partido político mais organizado do RJ é o jogo do bicho’, diz Capitão Guimarães em série que entrevista bicheiros sobre a ‘máfia brasileira’
Aos 81 anos, Aílton Guimarães Jorge, mais conhecido como Capitão Guimarães, falou pela primeira vez com detalhes de sua trajetória na cúpula da contravenção do Rio em entrevista gravada para a série “Vale o escrito: a guerra do jogo do bicho”, estreia desta quarta-feira (1º) no Globoplay.
Em sua mansão em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, entre citações a William Shakespeare e Bob Marley, afirmou que os bicheiros eram o “partido político mais organizado do Rio”, mas que foram “burros” ao buscarem os holofotes do carnaval carioca — ao se tornarem patronos de escolas de samba e criarem a Liesa, a liga que profissionalizou os desfiles da Sapucaí.
“O único bicheiro bandido que existe no Brasil é o do Rio porque nós fomos burros. Nós fomos aparecer com o samba.”
A série destrincha os personagens principais dessa história da “máfia brasileira”, como investigadores tratam a confraria de bicheiros que, tal como mafiosos italianos, se uniu e dividiu a área de atuação de cada grupo pelo Grande Rio — e, consequentemente, os lucros.
Um seleto grupo de contraventores cuja trajetória está diretamente ligada às histórias do carnaval, do Rio e da violência.
O jogo do bicho, proibido por lei, se organiza como um negócio de milhões e é celebrado por boa parte da população, seja em pontos de anotação nas esquinas, seja no Sambódromo com as escolas de samba, como diz Ricardo Calil, um dos diretores e roteiristas da série, ao lado de Felipe Awi.
“Se o Ministério Público tem razão, se é uma máfia, é uma máfia com particularidades muito brasileiras”, diz Calil.
Para o Capitão Guimarães, a longevidade do bicho vem da organização criada em meados dos anos 1970 entre os chefões e que mantém a cúpula da contravenção no poder até hoje.
“O partido político mais organizado aqui do estado do Rio se chama jogo do bicho. Porque nós temos diretórios nos 92 municípios do estado, uma direção única. Nós não temos briga, entendeu? Por quê? Nós vendemos o mesmo produto pelo mesmo preço com áreas definidas. Então, nós somos amigos entre nós. Não temos motivo para não sermos amigos”, explica.
Guerras de Andrades e Garcias
A fala do Capitão Guimarães faz jus à sua geração de bicheiros, mas ignora uma briga histórica de décadas e que parece não ter fim: a das novas gerações pela sucessão. Especialmente a que envolve duas famílias: os Andrade e os Garcia.
Em 1997, com a morte do “capo dei capi” — como é conhecido na máfia siciliana o “poderoso chefão” — Castor de Andrade, deu-se início a uma sangrenta batalha na própria família pela herança dos negócios.
A série relembra, por exemplo os assassinatos de Paulinho Andrade, um dos filhos, em 1998, e de Fernando Iggnácio, genro de Castor, em 2020.
O sobrinho Rogério Andrade, hoje tido como o mais temido bicheiro do Rio de Janeiro, também sofreu atentados. Num deles, foi salvo porque a arma do atirador falhou. No outro, viu o próprio filho, Diogo, morrer quando seu carro explodiu com uma bomba em plena Avenida das Américas, a mais movimentada da Barra da Tijuca.
A série também conta como Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, começou a assumir os negócios do pai, Waldemir Garcia, o Miro, presidente de honra do Salgueiro e membro da cúpula do jogo de bicho.
Milionário e mulherengo, Maninho ficou amigo de jogadores de futebol e outros famosos. Chegou a ser capa de revista como o “novo rei do Rio”.
O perfil violento e ambicioso, no entanto, lhe deu vida curta. Foi assassinado em 2004, aos 42 anos, em outra morte não esclarecida — como a maioria na guerra do jogo do bicho. A série lembra a presença de Romário, Edmundo e Renato Gaúcho no enterro de Maninho.
Dois de seus filhos também foram alvos de matadores: Myro morreu em 2017, e Shanna escapou de atentado em 2019.
Entrevista com Shanna e Bernardo Bello
Shanna, aliás, está entre os entrevistados da série, assim como sua irmã gêmea, com quem é brigada, Tamara; sua mãe, Sabrina; sua madrasta, Ana Claudia Soares (a primeira rainha de bateria do Salgueiro); e até o ex-cunhado, Bernardo Bello, ex-presidente da Vila Isabel e atualmente foragido.
Outro nome de destaque no atual cenário do bicho no Rio, Bello era casado com Tamara, começou a trabalhar com os Garcia, mas se separou da mulher e da família para assumir posição de chefia dos negócios. Responde, entre outros crimes, como mandante da morte de Bid, tio da ex-mulher.
Pesquisa de 2 anos e depoimentos inéditos
A série, em sete episódios, foi produzida em pouco mais de dois anos com muita pesquisa e depoimentos inéditos.
“Grande parte do nosso esforço foi convencer essas pessoas – que nunca falam sobre a contravenção ou, no máximo, dão declarações pontuais – a nos dar entrevistas longas e em profundidade”, conta Calil.
À frente da direção artística, o jornalista Pedro Bial resume a série:
“Mostramos que a máfia brasileira, carioca, é única no mundo, poderosa, com uma expressão estética incomparável”, diz Pedro Bial.
Fonte: G1