'Judiciário não governa, mas impede o desgoverno', afirma Ayres Brito, ex-presidente do STF - Tribuna NF

‘Judiciário não governa, mas impede o desgoverno’, afirma Ayres Brito, ex-presidente do STF

Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto é contundente ao comentar os ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro contra o sistema eleitoral brasileiro. O descontentamento, primeiro, foi manifestado por escrito e em conjunto. Ele foi um dos 15 ex-presidentes da Corte Eleitoral que assinaram nesta segunda-feira a carta em defesa da confiabilidade do modelo atual. Em entrevista ao GLOBO, ele faz um apelo em favor do respeito à separação entre os poderes, diz que jamais viu conduta tão agressiva quanto a do atual titular do Palácio do Planalto e classificou ditaduras como “barbáries”.

A que o senhor credita a série de ataques do presidente ao sistema eleitoral brasileiro?

Objetivamente, é um equívoco, é uma intromissão indevida na competência do Poder Judiciário eleitoral brasileiro. Quem processa eleição de ponta a ponta, materialmente, é a Justiça eleitoral brasileira. Vamos respeitar a independência do Poder Judiciário brasileiro. O sistema constitucional brasileiro é que diz isso.

Como o senhor viu a reação do TSE para que Bolsonaro seja investigado por disseminar fake news?

A resposta institucional foi dada com a nota dos ex-presidentes do TSE. A magistratura brasileira está unida, coesa, e convicta que há no brasil um sistema eleitoral, uma Justiça Eleitoral, e que o princípio da independência dos Poderes há de ser observado, cada qual no seu quadrado normativo. Quem entende de eleição é a Justiça Eleitoral. O Judiciário não governa, não se candidata ao voto popular, mas impede o desgoverno. Vamos respeitar a Constituição, pronto.

O senhor já havia visto algo parecido com a conduta do presidente?

Não, com essa agressividade, com essa contundência, não. Eu fui presidente durante dois anos e jamais havia visto.

No seu entendimento, quais podem ser as consequências dos procedimentos abertos ontem pelo TSE?

No limite, o presidente pode incorrer em crime eleitoral. O Código Eleitoral é específico sobre quem faz denunciação caluniosa eleitoral. Eu não estou dizendo que o presidente cometeu tais crimes. Eu estou dizendo que o presidente se expõe a esse tipo de investigação por denunciação caluniosa eleitoral, daí esse inquérito aberto pelo corregedor do TSE. E daí porque se encaminhou a matéria para o STF. Não é um juízo a priori, mas uma avaliação em tese.

Para o senhor, movimentos que colocam as eleições e o processo eleitoral em xeque indicam um fragilidade da democracia?

A democracia tem seus desafios, suas contestações. A democracia é um processo, e é o único sistema político realmente civilizado. Tudo o mais é barbárie. Por isso que ela só é radical em uma coisa: ela não admite alternativa, porque a alternativa teórica seria a ditadura. E ditadura não é alternativa racional, é uma barbárie, uma violência inominável. Nenhuma democracia morreu de morte morrida. Toda democracia que foi varrida do mapa, morreu de morte matada, porque há os inimigos da democracia. Os golpes já não se dão mais num piscar de olhos. Os golpes não se dão mais do dia para a noite, com tanques na rua ao amanhecer do dia seguinte. Eles se dão processualmente. Primeiro, você ataca as instituições, porque democracia é governo de instituições, não de pessoas. E os inimigos começam, aos pouquinhos, acumulando o ataque às intuições aos ataques aos agentes das instituições. Os golpes hoje se dão assim. É preciso que estejamos todos atentos aos processos contemporâneos de ataques à democracia.

Qual a sua percepção sobre a discussão que tem sido travada sobre o voto impresso?

Em 1996, já se experimentou em paralelo a comprovação da autenticidade do processo via impressoras, e essa experiência foi repetida em 2002. A conclusão a que se chegou à luz do dia, tecnicamente, é de que o voto impresso é inapropriado para o fim que se pretende. É como misturar água e óleo. Só faz conturbar, e se presta para manipulação humana, para, aí sim, fraudes. Seria um retrocesso. É preciso dizer isso às pessoas.

A que o senhor atribui esses movimentos que pedem o voto impresso ?

Nós somos felizes eleitoralmente e não sabemos disso. Até parece que, consciente ou inconscientemente, certas pessoas são masoquistas porque, como todo masoquista, são pessoas que se sentem mal quando estão bem, e se sentem bem quando estão mal. Nós estamos muito bem porque processamos eleições tão céleres quanto seguras, com autenticidade absoluta nos temos de apuração de votos.

Qual é o seu nível de confiança no sistema das urnas eletrônicas?

Urna eletrônica é algo assim como democracia, é viagem de qualidade sem volta. Você não pode pensar em substituir a democracia, você pode pensar em aperfeiçoar a democracia. Concurso publico, licitação, internet são viagens de qualidade sem volta, são ganhos de civilização. O que se pode fazer, tentar, é contribuir eletronicamente. O sistema eletrônico já é auditável. Ele tem seus patamares de segurança, de tecnicalidade avançada e é à prova de fraude, é inviolável. Nunca se provou uma fraude eleitoral, então quem chega pedindo a introdução do voto impresso para auditar o voto eletrônico não percebe que o voto impresso não pode servir de elemento de auditagem porque ele é inferior tecnologicamente ao objeto da própria auditagem.

Fonte: O Globo

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