26/07/2024
Polícia

Nova cúpula do jogo do bicho: guerra por territórios muda mapa da contravenção e tem rastro de 13 mortes

Nos fundos do Cemitério de Inhaúma, na Zona Norte do Rio, dois homens se esgueiram entre as lápides. Um deles segura uma espécie de controle remoto; o outro tem nas mãos um buquê de rosas — parte do disfarce da dupla de pistoleiros, que está ali numa missão de monitoramento de um alvo. “Tá altão o drone. Fuzil na laje não tem, eu vi aqui, e não tem”, informa o homem que carrega as flores, identificado como José Ricardo Simões, a um comparsa pelo WhatsApp. Naquele momento, na manhã de sexta-feira, 18 de novembro de 2022, o aparelho controlado pelos sicários sobrevoava a Favela do Guarda, colada no muro de trás do cemitério. “Zé, eles tão apontando para o alto aí, cara! Acho que tão vendo o drone. Não dá mole, mano! Senão eles vão mudar a rotina dele e vão f. com a gente”, respondeu o interlocutor, que acompanhava a movimentação na favela em tempo real por uma câmera de segurança. “Vou mandar abaixar”, respondeu Simões.

A troca de mensagens foi interceptada pela Polícia Civil. Um dia depois, o miliciano Marco Antônio Figueiredo Martins, o Marquinho Catiri, seria fuzilado por homens encapuzados ao sair de uma academia exatamente na região que o drone sobrevoara na véspera. Para o Ministério Público (MPRJ), a execução foi um capítulo decisivo da guerra entre bicheiros pelo monopólio do jogo ilegal na Grande Tijuca e na Zona Sul do Rio.

A chave da disputa

Em combate, está o faturamento milionário decorrente da exploração de mais de 40 pontos de jogo do bicho e 10 mil máquinas caça-níqueis, além do controle de uma rede de bingos e cassinos clandestinos na região mais rica da cidade. Mais de um ano após seu início, a disputa — que contabiliza, segundo levantamento do GLOBO, 13 mortos, cinco baleados em atentados e duas vítimas sequestradas cujo paradeiro é desconhecido — consolidou a ascensão de uma nova cúpula do jogo e já provoca mudanças no mapa da contravenção no Rio.

O homicídio de Marquinho Catiri foi um episódio central da guerra: pouco antes do crime, o miliciano — chefe de um grupo paramilitar que domina favelas nas zonas Norte e Oeste — havia sido alçado a lugar-tenente do então chefe do jogo da Tijuca e da Zona Sul, Bernardo Bello. Para o MPRJ, a aliança com Catiri, costurada em 2021, fazia parte de uma estratégia de Bello para reforçar sua segurança e se manter na chefia dos negócios diante da mobilização de seus rivais para tomar a área.

Ex-genro de Waldemir Paes Garcia, o Maninho — que era o mandachuva da região até ser morto em 2004 —, Bello geria o espólio criminoso dos Garcia há uma década, apesar da resistência de parte da família, insatisfeita por não receber repasses dos lucros da contravenção.

Nos últimos dois anos, no entanto, Sabrina Garcia, a viúva de Maninho, e sua filha Shanna começaram a se movimentar nos bastidores para articular a derrubada de Bello. Em reuniões cercadas de sigilo, as duas deram carta branca para Rogério Andrade, sobrinho do capo da contravenção Castor de Andrade, e Adilson Coutinho Oliveira Filho, herdeiro de uma família de bicheiros da Baixada Fluminense, tirarem a região das mãos de Bernardo.

Ambos os procurados pelas herdeiras dos Garcia são figuras ascendentes na contravenção do Rio. Rogério venceu uma guerra que travava desde os anos 1990 com o genro de Castor, Fernando Iggnácio — executado a tiros em 2020 —, pelo controle do espólio criminoso da família e ainda anexou territórios importantes, como a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, aos seus domínios nas últimas décadas. Já Adilsinho, apontado como chefe de uma máfia que monopoliza a venda de cigarros ilegais no estado, teria a ambição de se tornar um capo da contravenção.

Com o aval da família Garcia, Rogério e Adilsinho buscaram o reforço de outro herdeiro da contravenção para a disputa: Vinicius Drummond, filho do bicheiro Luizinho Drumond, que controlava pontos de jogo ilegal na Zona da Leopoldina até morrer, em 2020.

‘Superar a velha cúpula’

A aliança do trio está documentada num relatório da investigação da Delegacia de Homicídios (DH) sobre o homicídio de Catiri, que aponta a relação do crime com “a tomada dos pontos de jogo explorados pelo contraventor Bernardo Bello, por Adilsinho, Rogério Andrade e Vinicius Drummond, que estariam tentando estabelecer uma nova cúpula do jogo do bicho”. Atualmente, José Ricardo Simões, o homem que monitorava Catiri com um drone, está preso e responde pelo homicídio. Segundo o inquérito, ele é funcionário da família de Adilsinho.

A intenção de criar uma nova cúpula do jogo foi exposta pelo próprio Adilsinho numa conversa com um amigo interceptada pela Polícia Federal. “O ‘verde e branca’ falou comigo de fazer uma nova organização. Só que eu não consigo falar com ele. Eu também quero, eu também quero poder”, disse. Segundo a PF, “verde e branca” seria uma referência a Rogério Andrade, patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, que tem as cores em sua bandeira.

A nova organização sugerida por Adilsinho teria o objetivo de superar a “velha cúpula” da contravenção, criada na década de 1970 para apaziguar conflitos entre bicheiros a partir de uma divisão clara de territórios entre seus integrantes. “Já deu, já passou! É outra geração agora! Tem que entender! Não tem santo… é tudo malandro! Tudo bandido mesmo! Trata a gente bem na vaselina, mas quer ser centralizador! A velha cúpula já foi há muito tempo”, afirmou Adilsinho na conversa interceptada pela PF. Dos integrantes originais da “velha cúpula”, ainda estão vivos Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, que controla o jogo em Niterói, Aniz Abrahão David, o Anísio, dono dos pontos em parte da Baixada Fluminense, e José Caruzzo Escafura, o Piruinha, chefe de parte da Zona Norte.

Investigações da polícia revelam que as mesmas armas usadas no assassinato de Marquinho Catiri foram empregadas em outros cinco homicídios e num atentado que terminou com uma vítima baleada, entre fevereiro de 2022 e junho deste ano. Um dos mortos foi Fernando Marcos Ferreira Ribeiro, fuzilado por dois homens com toucas ninja em 6 de abril passado, na Rua Caruso, na Tijuca. Ribeiro era funcionário de Bello e trabalhava recolhendo dinheiro de pontos de jogo da Tijuca.

A partir da quebra de sigilo de José Ricardo Simões, o responsável por monitorar Catiri, a DH descobriu que ele também seguiu os passos de outras quatro vítimas de crimes bárbaros ao longo do último ano: duas delas foram executadas a tiros e, duas, sequestradas, ainda não foram encontradas. Todos esses crimes, segundo a polícia, foram cometidos por pessoas ligadas a Adilsinho.

Trio denunciado na polícia

No meio do fogo cruzado, Bernardo Bello e seus comparsas decidiram retaliar. Em abril, após seu filho ser baleado num atentado no Centro, Luiz Cabral Waddington Neto, gerente dos pontos de jogo de Bello, promoveu um ataque a tiros a um bar em Vila Isabel que terminou com dois feridos. Na semana seguinte, Cabral foi à 6ª DP (Cidade Nova) denunciar a “nova cúpula” pelo crime que vitimou seu filho: “Eu tenho certeza que foi preparado pelo pessoal do Adilsinho, Rogério Andrade e o Vinicius Drummond querendo tomar o ponto de bicho nosso. Eu trabalho há 20 anos para os Garcia. Tomo conta de pontos do Andaraí ao Leblon. Estão passando há dois meses, passando nos pontos, dizem que quem não trabalhar com eles vai morrer. Hoje, todos os funcionários estão com medo”, disse o bicheiro à TV Globo ao sair da delegacia.

O conflito chegou ao Complexo Penitenciário de Gericinó. Depois que José Ricardo Simões foi preso sob a acusação de participar do atentado a Catiri, seu advogado denunciou à Justiça que o detento foi procurado, na cadeia, por “intermediários do contraventor Bernardo Bello”, que teriam oferecido “vantajosa proposta financeira” para que ele confessasse a autoria do crime e apontasse o mandante. Após a denúncia, Simões foi transferido para Bangu 1, presídio de segurança máxima.

Hoje, a polícia investiga se a guerra chegou ao fim e se os pontos de jogo da família Garcia mudaram de mãos. Desde o ano passado, Bernardo Bello está foragido; investigadores suspeitam que ele tenha saído do Rio. A polícia já sabe que, ao menos em parte da Zona Sul, a “nova cúpula” administra o jogo ilegal — e os repasses aos herdeiros de Maninho teriam sido regularizados.

Rogério Andrade responde em liberdade a um processo em que é acusado pelos crimes de organização criminosa e corrupção ativa. Já Adilsinho e Vinicius Drummond não têm acusações. Os advogados de Adilsinho não quiseram comentar a guerra pelo controle do jogo na Zona Sul. O GLOBO não conseguiu contato com as defesas de Rogério Andrade e Vinicius Drummond.

Fonte: O Globo

Alerj

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *