Espionagem, consultoria suspeita e roubo de notebooks: investigações expõem bastidores da ‘guerra’ do delivery no Brasil

Nas últimas semanas, casos de ex-funcionários suspeitos de venda de informações sigilosas envolveram marcas como 99Food e iFood
Por Ana Flávia Pila, de O Globo
O mercado de delivery tem sido sacudido por investigações internas e policiais que revelam uma nova — e preocupante — frente de disputa comercial entre as empresas por trás de aplicativos do ramo: o furto de dados confidenciais e a espionagem industrial.
Há suspeitas lançadas sobre ex-funcionários de 99Food e iFood, consultorias estrangeiras e até um caso de roubo de notebooks, em batalhas de uma guerra comercial que envolve informações estratégicas de empresas e do setor.
Na semana passada, a 99, controladora da 99Food, abriu uma investigação interna para apurar um vazamento de dados confidenciais que pode ter ocorrido por meio de furtos de notebooks corporativos e da atuação de consultorias que teriam assediado funcionários.
Entre os dados possivelmente comprometidos estão planos e cronogramas de expansão para novas cidades, contratos com restaurantes e detalhes sobre estrutura e estratégias comerciais da plataforma. A empresa também investiga a ocorrência de roubo e furto de notebooks de funcionários que ocupam cargos estratégicos, incluindo pessoas diretamente ligadas às lideranças da 99 e da 99Food.
O cenário guarda semelhanças com denúncias já feitas pelo iFood à Polícia Civil de São Paulo, segundo as quais empresas de consultoria estariam abordando seus colaboradores sob o pretexto de realizar pesquisas de mercado.
Assédio recorrente
A 99 informou que centenas de funcionários relataram ter recebido mensagens, algumas mais de uma vez por dia, com ofertas que variavam de US$ 200 a US$ 1 mil por uma reunião na qual seriam solicitadas informações internas das empresas.
A atuação dessas consultorias e a transferência de dados sigilosos ganharam contornos criminais em inquéritos policiais que apuram concorrência desleal. Neste mês, a Unidade de Polícia Judiciária (UPJ) de Piracicaba, no interior de São Paulo, cumpriu um mandado de busca e apreensão contra um ex-funcionário do iFood.
O homem teria transferido milhares de dados de clientes e informações internas da empresa para dispositivos pessoais. O material se refere a mais de 4 mil restaurantes cadastrados na plataforma. Durante a operação, dispositivos eletrônicos foram apreendidos e posteriormente encaminhados à perícia técnica.
Denúncias
Pouco antes, o 32º Distrito Policial da Polícia Civil de São Paulo realizou uma operação contra outro ex-colaborador do iFood, investigado por furto mediante abuso de confiança e invasão de dispositivo informático.
O processo detalha que consultorias estrangeiras têm procurado massivamente funcionários do iFood pelo LinkedIn, oferecendo dinheiro para uma conversa. Nessas reuniões, os interlocutores fazem perguntas sensíveis sobre temas como lucro e estrutura operacional da empresa.
Esse investigado, segundo o inquérito, chegou a enviar áudios e prints dos valores recebidos (que totalizam mais de R$ 5 mil) a um grupo de mensagens interno chamado “Rádio Peão ifood”, para onde também teria encaminhado uma lista de perguntas feitas por uma mulher que se apresentou como funcionária de uma consultoria chinesa chamada China Insights Consultancy (CIC Global).
As questões incluíam o valor total das vendas por cidade, dados relacionados à precificação da taxa de entrega, volume mensal de pedidos no mercado de entrega de alimentos e o impacto da chegada de concorrentes estrangeiras como 99 e Meituan, ambas de origem chinesa.
Numa dessas conversas, estaria um executivo da Meituan, dona do serviço de delivery Keeta. Os fatos começaram a ser investigados a partir de denúncia recebida pelo Canal de Integridade do iFood.
O que dizem as empresas
Procurada, a Meituan disse que “não contrata quaisquer empresas para abordar indivíduos em seu nome para os fins mencionados”. A dona da marca Keeta acrescentou que não recebeu nenhuma notificação.
“A Keeta reitera seu total compromisso com as melhores práticas de mercado e se coloca à disposição para colaborar com as autoridades quando necessário”, concluiu o comunicado.
O GLOBO procurou a China Insights Consultancy (CIC Global), que não retornou o contato até a publicação desse texto.
O iFood, por meio de nota, afirma que “os casos tramitam em segredo de justiça e o iFood se manifestará somente nos autos por meio do escritório Feller Advogados. O iFood reforça que repudia qualquer prática de concorrência desleal, incluindo tentativas de espionagem corporativa, e continuará trabalhando para a construção de um ambiente transparente e ético no mercado de delivery, que faça jus à importância que o setor tem para o país e para os brasileiros.”
Disputa com lances controversos é longa
Também em outubro, a Justiça de São Paulo proibiu cláusulas de exclusividade da 99Food com restaurantes parceiros. A empresa oferecia taxas mais vantajosas a quem aceitasse operar apenas com ela, impedindo o uso de outras plataformas, como a Keeta, autora da ação.
No lançamento da plataforma no Rio, o diretor-geral da 99 no Brasil, Simeng Wang, afirmou que há contratos com e sem exclusividade, por até dois anos, e um modelo “semiexclusivo”, em que o restaurante mantém o iFood, mas não trabalha com novos concorrentes.
A plataforma da Meituan disse em nota que, ao investir no Brasil, “firmou compromisso com o desenvolvimento de um mercado onde todos possam ter mais escolhas”, e que, com a decisão, os restaurantes “estão livres para decidir pela plataforma que oferecer o melhor serviço”.
Já a 99Food informou que vai recorrer da decisão. Ao GLOBO, o diretor de Comunicação da 99, Bruno Rossini, argumentou que a conduta da empresa é legal e está dentro de todas as práticas regulatórias.
Sobrou até para as bags
Nessa briga, sobrou até para as bags. As mochilas usadas pelos entregadores viraram um importante espaço de marketing para as empresas, já que cada um deles faz, em média, dez viagens por dia e circula por diferentes bairros.
Trabalhadores ouvidos pelo GLOBO relatam que, assim que a 99Food anunciou sua chegada ao país, o iFood ampliou a entrega de bags e de campanhas promocionais. A concorrente agora busca trocar as mochilas do iFood pelas suas, dizem.
Essa ofensiva também gerou disputa judicial. Em 15 de outubro, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu contra a 99Food, que havia ingressado com uma ação contra o iFood sob a alegação de que a empresa conduz campanha sistemática para eliminar a presença visual da marca.
Segundo os trabalhadores, times do iFood têm comparecido a pontos de encontro de entregadores em diferentes cidades para estimular a troca das mochilas da concorrente, oferecendo vouchers e brindes em troca. Além disso, o iFood passou a perguntar a alguns usuários, no momento da avaliação do pedido, qual era a bag usada pelo entregador. Essa pergunta foi incluída na avaliação em setembro de 2025.
O iFood afirma que utiliza diversas estratégias de engajamento de entregadores, como blitz premiadas, check-ins on-line e campanhas de gorjeta dobrada. Essas ações já ofereceram prêmios como descontos e vouchers na Loja do Entregador, vale-combustível e até uma moto 0 km.
A empresa também mantém promoções permanentes de incentivo baseadas em desempenho, como o programa Super Entregador, que oferece vantagens como até 30% mais ganhos, plano de celular gratuito e itens exclusivos.
Já a 99 tem investido em ações de aproximação com os entregadores, promovendo encontros com coffee breaks e influenciadores do setor. A empresa disse ao GLOBO que costuma promover entregas de bags e vestimentas ao ingressar numa nova cidade e oferece pacotes de ganhos, como R$ 250 a cada 20 corridas.
Em uma tática de diferenciação, a Keeta vai oferecer, até o final do ano, um capacete inteligente a entregadores da Baixada Santista (inicialmente para ciclistas e, futuramente, para motociclistas). O acessório possui tecnologia que permite a comunicação por voz sem tirar as mãos do guidão, além de GPS e sensores que enviam alertas de segurança.
A Keeta disse que está finalizando os processos de certificação para iniciar a distribuição gratuita e afirmou em nota: “Nossa tecnologia proprietária de roteirização e algoritmos de inteligência artificial também nos permitem otimizar rotas, reduzir tempos de espera e aumentar o volume de entregas sem sobrecarregar os entregadores”.
Fonte: O Globo


